sábado, 5 de fevereiro de 2011

O planeta tem sede



Brasil se prepara para cobrar pela
água como forma de afastar uma
crise que já preocupa o mundo
A água, depois do ar, é o elemento mais vital para o ser humano. Por existir em grande quantidade, não é encarada com a veneração que mereceria. As pessoas simplesmente se esquecem de agradecer pela sorte de poder contar com um copo de água cristalina na hora da sede. E deleitam-se, sem consciência de que este é um ritual quase sagrado, debaixo das cachoeiras domésticas que lhes lançam jatos de água quente na hora do banho. Pouca gente sabe, mas a conta de água que chega no fim do mês cobra apenas pelo tratamento e distribuição da água. O líquido, em si, é de graça. Mas essa situação está com os dias contados. Em breve, a água utilizada pela população terá de ser paga, como se faz com o gás encanado e a eletricidade. "A cobrança pela água no Brasil é irreversível", diz Raymundo José Santos Garrido, secretário de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente. Nos estudos do governo, a água deverá custar em torno de 1 centavo o metro cúbico (1.000 litros) – o que, só no Estado de São Paulo, vai gerar uma arrecadação anual de mais de 550 milhões de reais. A cobrança vem com a justificativa de colocar um torniquete no consumo exagerado e fornecer a verba para obras do setor. Para gerenciar todo o sistema, está sendo criada a Agência Nacional das Águas, Ana.

Cobrar pela água é prática comum em algumas dezenas de países. Nos Estados Unidos, existe um mercado em Estados áridos do Oeste, como o Colorado, onde se compram 1.000 litros por menos de 2 cents. Cobra-se pela água também em países europeus como França, Alemanha e Holanda, em torno de 17 cents pelo mesmo volume. No Oriente Médio, algumas nações chegam ao extremo de importar água para consumo doméstico. A política de cobrança é mais disseminada nas regiões em que há escassez, mas mesmo países ricos em recursos hídricos, como o Canadá, a adotam. Há experiências de cobrança também no Chile, no México e na Argentina. No Brasil, já se paga pela água no Ceará: 1 centavo por metro cúbico de água para consumo doméstico, 60 centavos para a indústria.

Medidas como essa fazem parte da cartilha de recomendações da Organização das Nações Unidas, ONU, para afastar um problema de dimensões globais. Segundo os dados da entidade, um quinto da humanidade não tem acesso a água potável e o estoque de água doce do planeta estará quase totalmente comprometido dentro de 25 anos. "Até duas décadas atrás, problemas sérios com água estavam confinados a alguns bolsões do mundo. Hoje eles existem em todos os continentes e estão se disseminando rapidamente", diz a estudiosa americana Sandra Postel, dirigente da Global Water Policy Project. É preciso, portanto, tratar bem da água e isso não tem sido feito. Os relatórios da ONU alertam para o fato de que, nos países em desenvolvimento, 90% da água utilizada é devolvida à natureza sem tratamento, contribuindo assim para tornar mais dramática a rápida deterioração de rios, lagos e lençóis subterrâneos. Embora hoje estejam mais comportadas, no passado as nações desenvolvidas também fizeram das suas. Alguns rios no Canadá e nos Estados Unidos chegaram a ficar tão emporcalhados que era possível atear fogo em sua superfície coberta de óleo. Sob pressão da comunidade, tiveram de investir também rios de dinheiro para recuperá-los.

Parece surpreendente que o planeta azul, com 70% de sua superfície coberta por água, tenha chegado a esse ponto. Mas, visto de perto, em volta desse azul há gente como nunca. No início do século, éramos pouco menos de 2 bilhões de habitantes. Hoje somos mais de 6 bilhões. Em 2025 haverá 8,3 bilhões de pessoas no mundo. Enquanto a população se multiplica, a quantidade de água continua a mesma. A água doce corresponde a apenas 2,5% da massa líquida do planeta e a maior parte dela está nas geleiras. Ao alcance do uso humano, fica apenas uma pequena parcela de 0,007%. Pois ela tem sido consumida vorazmente e é aí que reside o maior problema. Nos últimos 100 anos, enquanto a população mundial triplicava, o uso de água doce multiplicava-se por seis. A principal responsável por esse aumento foi a agricultura irrigada. Ela revolucionou a produção agrícola, mas criou uma nova dificuldade, porque sozinha utiliza 70% da água doce disponível.

Até agora o Brasil tem andado devagar nessa matéria, embora também esteja na roda da escassez. Visto pela lente das estatísticas, o país está numa situação confortável. Cerca de 8% da água doce do globo está em território nacional. Pelos padrões internacionais, os problemas ocorrem quando se dispõe, por ano, de menos de 1.000 metros cúbicos de água por habitante – caso do Oriente Médio e do norte da África. O Brasil, ao contrário, poderia afogar sua população com uma média anual de 36.000 metros cúbicos de água por cabeça. É uma falsa impressão. A começar pelo fato de que 80% dessa água está na Amazônia, onde vivem apenas 5% da população brasileira.

Não se pense que o problema brasileiro restringe-se à região do semi-árido, afetada pelas secas. O Estado mais desenvolvido do país, São Paulo, enfrenta grandes dificuldades também. A água existe, mas é pouca para atender aglomerações como a da região metropolitana de São Paulo, com seus 17 milhões de habitantes. Até setembro do ano passado, o rodízio no abastecimento atingia 5 milhões de pessoas. Elas recebiam água um dia e ficavam dois sem. Considerando seus próprios recursos, a Grande São Paulo poderia oferecer apenas 200 metros cúbicos de água por habitante ao ano – um volume que daria apenas para o gasto doméstico. Por causa dessa miséria hídrica, a Grande São Paulo tem de tomar água emprestada de outras bacias, como a do Rio Piracicaba, que garante 55% de seu abastecimento. "Estamos no limite e temos poucas alternativas", diz Hugo Marques da Rosa, presidente do Comitê da Bacia do Alto Tietê.

O caso do Nordeste já é clássico. A região recebe mais chuvas do que a Espanha, mas sofre pela falta de água por uma combinação perversa de três fatores: as chuvas concentram-se em um período muito curto, o solo rochoso não permite que a água alimente os lençóis subterrâneos e, por fim, a forte insolação transforma em vapor 90% da água trazida pelas chuvas. As soluções para o problema são difíceis e caras. No ano passado, só com medidas emergenciais, o governo federal gastou cerca de 1,2 bilhão de reais para atender uma população de 12 milhões de pessoas atingidas pela seca.


Quando a água se torna escassa, a economia balança. No Nordeste brasileiro, a seca tem um impacto violento sobre a produção. Nos últimos anos, segundo estudo da Agência Nacional de Energia Elétrica, ANEE, ela foi responsável por uma redução de 4,5% do produto interno bruto regional. Sem contar as oportunidades que a região perdeu. Mesmo o poderoso interior de São Paulo já sofre com esse problema, segundo o secretário estadual de Recursos Hídricos, Antonio Mendes Thame. "Falta água para novas indústrias", diz ele. Pelo globo afora, à medida que a escassez aumenta, crescem os investimentos para garantir o abastecimento. No Oriente Médio, a situação é tão crítica que se gasta muito, mesmo que seja para obter pouco. A Arábia Saudita instalou 25 estações de dessalinização da água do mar – o processo mais caro de obtenção de água doce – para atender a menos de 4% de suas necessidades.

Os efeitos da falta de água fresca e boa são cristalinos quando se fala em saúde. Mais de 5 milhões de pessoas morrem por ano devido a doenças relacionadas à má qualidade da água e a condições ruins de higiene e saneamento. Os dados são da Organização Mundial de Saúde, cujos especialistas calculam que metade da população dos países em desenvolvimento é afetada por moléstias originadas na mesma fonte, como diarréia, malária e esquistossomose. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, a diarréia mata 50.000 crianças por ano, em sua maioria antes de completar 1 ano de idade. Além disso, a falta de água de qualidade e de serviços de saneamento – apenas 16% dos esgotos sanitários são tratados no país – é responsável por 65% das internações hospitalares.

O consumo humano de água em coisas básicas como saciar a sede, banhar-se, lavar a roupa e cozinhar é pequeno. Uma pessoa precisa de um mínimo de 50 litros por dia. Com 200 litros, vive confortavelmente. É pouco, comparado com os 1.910 litros de água necessários para produzir 1 quilo de arroz ou 3.500 para garantir 1 quilo de frango. E é nada perto dos 100.000 que se gastam para produzir 1 quilo de carne de boi. "Uma dieta saudável para uma única pessoa exige 1,2 milhão de litros ao ano", calcula Philip Ball, autor de H2O, A Biography of Water (H2O, Uma Biografia da Água).

Essa onipresença da água dá uma medida do seu valor econômico ao mesmo tempo que coloca uma interrogação sobre o impacto que a cobrança pelo seu uso terá sobre o custo de vida. É uma equação difícil de resolver. Legalmente, no Brasil, o Estado pode cobrar por ela desde janeiro de 1997, quando foi aprovada a Lei das Águas. A perspectiva da cobrança pode desagradar o cidadão, que já paga impostos demais. Tem a seu favor, porém, a vantagem de jogar luz sobre um tema que costuma ficar encoberto como os canos.

Revista Veja.Reportagem de Cesar Nogueira

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